sexta-feira, 17 de agosto de 2012

FeliCIDADE


Imagem: Egon Schiele 




No fim daquela noite restavam apenas os olhos embebidos em lágrimas e afogados em delírio, em volta os cercava um cenário de sombras e rubras pinturas abstratas gravadas nas paredes carcomidas pelo tempo. As sombras dançavam frementes se intercalando aos feixes de luz, à medida que o vento abraçava com ruidosa parcimônia todo o exterior da casa. No quarto escuro, jazia o gigante silêncio, que era quebrado apenas por leves incursões respiratórias e os gemidos das lamentações.

Numa das quatro extremidades do recinto habitava o corpo branco e inerte duma jovem, envolta na altura do tórax por uma espessa malha sanguífera de alguma forma a placidez de seu rosto mantinha toda a exuberância angelical presente antes do seu peito emudecer. A sua volta um rio rubro se estendia feito um tapete qual cobria o assoalho cintilante e impecável, em sentido diagonal na outra extremidade estavam os olhos que a encaravam do alto de sua insanidade, e buscavam sem nenhum sucesso o entendimento de tudo que se precedera àquele momento. Intercalava a direção do olhar, ora para o corpo inerte banhado pelas sombras, ora para as mãos cobertas por um líquido vermelho com olor ferroso, que quente já não era, começando a unir-se à superfície daquelas mãos calejadas e varonis.

“O que eu fiz?” era o que pensavam aqueles olhos marejados de lágrimas e horror, “Por que não levanta?” gritava a boca tentando extirpar do peito o dolente espinho, mas nada fazia com que a moça se altivasse de seu leito sem vida. Foi quando avistou a arma inerte a sua frente, e tentou fazer parar de uma vez por todas aquela dor, caminhou lentamente até perto do metal reluzente e silencioso que repousava com a complacência de uma criança tomada pela força do sono pueril. Abaixou-se bem devagar, e tocou o frio metal com a mão direita, qual já apresentava uma coloração vermelho-amarronzada. Levantou o objeto de metal negro e reluzente, pôs encostado à sua glabela e enquanto o sua pele perdia calor para o metal frio, sentiu uma lágrima descer pelo seu rosto sem expressão. Puxou o gatilho.

Em frente à silenciosa casa, pássaros iniciaram voo, espantados pelo oco e inesperado estampido. No horizonte o sol despontava em seus primeiros raios de luz, a noite morria depois de encobrir a tragédia sem precedentes. Aos poucos a vida na pequena cidade foi tomando forma a lojinha de doces que as crianças a caminho da pequena escola, ao lado do suntuoso templo do padre Pedro Andrade frequentavam religiosamente, não apenas pelas centenas de guloseimas, mas também para receber de bom grado o primeiro afago do dia de sua proprietária, começa a abrir lentamente suas janelinhas de ápice arredondado e madeira com tinta azul, que contrastava com as paredes dum branco mui vívido.

A padaria já emanava pelo ar o cheiro dos pães frescos que ia de casa em casa convidando seus habitantes ao desjejum. Os primeiros rostos já começavam a se expor à luz tênue do sol de maio, buscando o frescor da brisa que cantava de forma harmoniosa e melancólica a canção dum novo dia. Os telhados de telhas vermelhas começavam a se iluminar e se destacar sobre a colina verde, tudo acontecia sob um clima pacífico quebrado apenas pelo canto dos pássaros e pelos primeiros arrulhos infantes dos meninos que se punham a correr de suas mães na tentativa de escapar do banho matinal, alguns se escondiam no interior de suas casas, outros, no entanto subiam em árvores com a certeza de assim estarem seguros do eminente risco de serem capturados. Abandonavam sua fortaleza logo que a fome apertava, sendo submetidos então à tortura aquífera que lhes aguardava prontamente.

O dia como sempre se iniciava de forma pacífica, aos pouco se via as crianças tomando as ruas em direção à escola, os pais saindo para seus afazeres, se cumprimentando a cada dois passos, às vezes se abraçando e compartilhando da pacata vida em comum, nenhum acontecimento escandalizava a pequenina cidade envolta por bosques verdes cheios de flores alegres, nenhuma contenda era registrada pela polícia local, a qual seu chefe era visto como psicólogo dos mais necessitados de atenção e juiz nos pequenos desentendimentos rotineiros do povoado que na maioria das vezes acabavam numa rodada de cerveja no botequim do Senhor Antônio entre a fumaça alegre de cigarros e frituras. Não era de se estranhar que aquele isolado logradouro fora batizado de Felicidade, tamanhas eram a paz e harmonia.

O que poucos esperavam, porém era o fato de que a rotina luminosa daquela pequena e isolada cidade seria quebrada repentinamente por um fato inimaginável, tudo parecia estar sob a mais perfeita ordem. Até que alguém percebeu sob o escaldante sol do meio dia que a pequena costuraria de Ester não abrira até aquele momento, iniciaram então burburinhos, “Não vi nem Ester, nem Fabrício, no dia de hoje!” dizia uma senhora de vestido lilás de cambraia, em meio a um grupo de mulheres, “Será que está enferma?” Questionava outra com um vestido de cetim róseo, foi quando repararam que a loja de ferragens de frente a pequena praça também se encontravam com as portas fechadas. “Olhem Fabrício também não abriu sua loja!”, observava uma terceira senhora entre as mulheres corpulentas que palestravam sobre a sombra das mangueiras na pracinha da cidade. 

Aquele fato denotava uma desconfiança incomum já que os dois estabelecimentos eram os primeiros a abrir suas portas. Alarmado o grupo de senhoras se encaminhou até defronte a casa do casal, que permanecia com as pesadas portas de carvalho fechadas, “Vejam, que estranho nenhum sinal dos dois, as portam estão caladas e as janelas fechadas, será que devemos ir até lá?” perguntou a mais nova dentre as mulheres, as demais apenas assentiram com um movimento de cabeça, enquanto entreolhavam-se com desconfiança. 

Bateram a primeira vez e o interior continuava calado, aparentando ausência de vida, bateram a segunda e não obtiveram resposta alguma, bateram com mais força a terceira vez, e nada aconteceu, sobressaltadas decidiram procurar ajuda e se dirigiram até a pequena delegacia no outro lado da praça, o delegado Felisberto, lia as notícias na gazeta, enquanto ouvia suas músicas preferidas no antigo rádio de pilhas herdado de seu pai, era um negro alto e muito forte, com dentição perfeita e de brancura reluzente, tinha mãos firmes e olhar tranquilo, sempre sorria mesmo quando tomado por suas angústias internas. Enquanto era tomado de ímpeto pela doce fúria das notas da 38° sinfonia de Mozart, sentia seu espírito elevar-se, quando de repente sua atenção é voltada para a porta ao seu lado esquerdo.

Virou assustado, adentrar em sua sala um grupo de mulheres que falavam todas de uma só vez e solicitavam uma atitude de sua parte, sobre algo que ele não conseguia compreender, as mulheres rumavam em sua direção gritando feito gralhas no fervor do acasalamento, ele não pode conter o espanto, mas logo recuperou a postura e repôs a ordem com sua voz grave e sonora. “Acalmem-se senhoras, aqui é uma delegacia não uma casa de loucos, acalmem-se ou mando detê-las.” Elas sabiam que não seriam detidas por nem ele, nem por ninguém, mesmo porque o delegado nunca prendia um ladrão de galinhas sequer, procurando sempre resolver os problemas da cidade com palestras ao invés de prisões.

Após serem alcançadas pela estrondosa e bela voz de Felisberto as mulheres silenciaram e se puseram a encará-lo, o delegado voltou a mostrar seu sorriso branco feito a neve e recuperou todo o seu espírito pacífico. “Muito bem, o que está havendo? Qual é o motivo do rebuliço?”.

-- Desculpe-nos Felisberto, é que a pouco percebemos... E todas recomeçaram a falar ao mesmo tempo. Era uma baderna infernal, o delegado então se encaminhou para a mesa onde estava o pequeno rádio e o desligou calmamente, abriu a gaveta da esquerda enquanto as vozes se misturavam e se confundiam e retirou de seu interior, um pequeno martelo madeira maciça semelhante aos usados nas cortes jurídicas, e com toda a força que lhe valia bateu na superfície da mesa, produzindo uma sessão de pancadas muito altas. “Calem-se, por favor, as senhoras estão acabando com minha razão” gritava o negro gigantesco detrás de sua mesa. Nesse momento todas as vozes deram lugar a um profundo silêncio, “desculpem senhoras, mas é impossível manter a calma ante a esses uivos de animais enfurecidos, queiram por gentileza, explicar-me o motivo do alarde de forma civilizada”. Foi quando a que tinha iniciado a frase voltou a falar.

-- Como ia dizendo, a pouco percebemos que Ester e Fabrício, não abriram seus estabelecimentos, como já passa do meio dia e eles são sempre os primeiros a começarem as atividades, decidimos averiguar, indo até sua casa, mas quando lá chegamos não parecia haver ninguém no recinto. Disse a mulher com vestido lilás.

-- Não pense que somos mexeriqueiras, apenas estamos preocupadas com o bem-estar de ambos. Completou a mulher com vestido de cetim.

-- Senhoras, meus homens não relataram nenhum acontecimento fora do normal, os dois devem ter dormido até tarde, mas iremos averiguar o fato. Disse Felisberto com seu sorriso amigável e sua serenidade paternal.

Após a palestra com as mulheres o delegado incumbiu dois soldados à acompanhá-lo até a casa do casal que ficava a poucos metros da delegacia, caminharam em meio aos transeuntes com muita calma, até chegar em frente ao portão de madeiras brancas, que guardava um jardim cultivado com esmero, violetas, rosas de todas as cores, girassóis, bromélias e amores-perfeitos disputavam o espaço daquele pequeno paraíso, a casa se levantava aos fundos imponente como uma fortaleza, foi construída pelas mãos do próprio pai de Fabrício, que morrera muitos anos antes ali mesmo naquele jardim. Nenhum dos três homens reparou no imenso pássaro negro que sobrevoava a velha casa, e entoava um canto lamurioso. Enquanto se aproximavam da porta.

Bateram uma vez, nas enormes portas de carvalho e obtiveram o mesmo silêncio que as mulheres, bateram a segunda vez e a mesma resposta foi dada. O delegado então emitiu sua potente voz em um urro gutural. “Fabrício, é a polícia, abra a porta, por favor,” nenhum som recebia como resposta, “Ester se estiver aí abra, ou entraremos por outros meios”, e mais uma vez a única coisa que ouviam era a voz do silêncio. Voltou-se para seus homens e ordenou que arrombassem as portas, os dois soldados entreolharam-se e empós obedeceram sem pestanejar. Os homens surravam as portas com suas pernas, forçando-a a gritar em resposta, chutavam e se lançavam em sua direção, até que uma delas cedeu e formou uma pequena fresta que permitia divisar o interior, “Esperem um momento” disse o delegado olhando para o imenso pássaro negro que agora estava pousado na parte mais alta do telhado e gritava seu canto enlouquecedor.

Os homens obedeceram e pararam de espancar as portas, “O que foi Felisberto, não quer mais entrar na casa?” questionava o mais novo dos soldados, “Nada, achei ter ouvido algo, mas parece que não foi nada” respondeu olhando o mesmo espaço vazio que antes contemplava. Aproximou-se da fenda entre as duas portas, e observou o interior da casa, nada se mexia, nenhum som se ouvia, entre os gritos do enorme pássaro invisível. “Derrubem-na, ordenou os dois” e voltaram a surrar o velho carvalho convertido em portas, após poucos segundos uma delas foi ao chão produzindo um enorme estrondo e os soldados puseram suas pistolas a punho, como que esperando o ataque de um inimigo vindo do interior da casa. Da mesma forma que antes, nada se mexia, nem produzia o menor ruído que fosse, parecia que a casa estava vazia há anos.

“Vamos entrar” gritou enquanto liderava a incursão ao interior do cômodo, os dois soldados o seguiam com extremo cuidado, sempre com as armas em punho e olhando tudo a sua volta, o delegado andava com cuidado, colocando categoricamente um pé a frente do outro, se detendo e averiguando o lugar à medida que ia avançando, ao chegar à sala principal onde a raiz da escada que levava aos cômodos do segundo andar e ao quarto do casal, Felisberto observou que tudo parecia em ordem, até parar em frente aos antigos degraus da escada, “Santo Deus, o que é isso?” Gritou, com seus grandes olhos arregalados, foi quando os dois soldados dirigiram seus olhares e armas para o mesmo sentido que o de Felisberto divisava e perceberam sobre a escada a torrente de sangue que jorrava se detendo no limite do primeiro degrau. “O que houve aqui, Deus? CHAMEM REFORÇOS ANDEM!” e um deles foi até a porta caída no chão. Saindo ao exterior da casa, gritando aos outros soldados que estavam em frente à delegacia. “Venham, venham rápido tragam suas armas”.

A pacata população que andava solene pelas ruas se amontoou em frente à casa, assombrada com os gritos do saldado e sua feição de horror, sem entender nada se acotovelavam para poder ver o que estava acontecendo. Ante ao fervor da multidão o enorme pássaro negro gritava cada vez mais alto, mas ninguém parecia ouvi-lo, os soldados correram imediatamente em direção ao casarão e abriram com esforço, caminho entre a multidão estarrecida e confusa. “Saiam, andem deem passagem”, no interior da casa, o delegado estava paralisado frente ao rio vermelho que descia pela escada, quando os homens entraram com as armas em punho e gritando feito feras, quando chegaram próximo à escada viram o rio vermelho que escorria pela escada, vindo dos aposentos superiores. “Deus do céu, que diabos é isso?” espantava-se um deles, “O senhor está bem delegado?” perguntava outro, “Andem vasculhem a casa” ordenava outro e Felisberto mantinha-se imóvel, ante ao rio vermelho.

Foi tirado da abstração pela voz de seus soldados e decidiu subir. “Vamos, quero dois comigo, a qualquer indício de perigo não hesitem em abrir fogo, o resto fique e vasculhe a casa”, falava com sua voz agora abatida pelo horror, suas mãos suavam, sua garganta estava seca e seu peito quase arrebentando. Foi o primeiro a pisar no rio vermelho, subiu com rapidez a escada, quase veio abaixo e derrubou os dois homens que o seguiam, ao escorregar no sangue corrente, mas conseguiu reestabelecer o equilíbrio e voltou a avançar, nem se lembrava a última vez que empunhara a pistola, mas tinha certeza que não queria voltar a empunhá-la nunca mais, chegou com cautela ao fim da escada, olhou em volta e não viu sinal de vida, a não ser no exterior da casa, onde se ouvia o rufar das vozes e o grito ensurdecedor do pássaro invisível.

Caminhou com extremo cuidado pelo corredor ladeado por quatro portas fechadas, pôs-se em frente a primeira e sinalizou para que os outros dois homens a abrissem, apontou a arma para a porta enquanto estes a escancaravam bem devagar, quando terminaram, não viu vestígio de nada além da mobilha coberta por uma fina camada de poeira, adentrou o recinto e constatou que realmente estava vazio. “Não há nada aqui, vamos para a próxima.” Assim fizeram com outras duas portas, obtendo o mesmo resultado que a primeira. Restava apenas uma, a que dava acesso ao quarto do casal. E somente depois perceberam que, da mesma forma que a escada o corredor estava banhado por sangue, reparou então que a nascente do rio vermelho provinha debaixo dessa. Sinalizou novamente para que abrissem a porta e assim o fizeram assumindo a mesma posição das anteriores adentrou no recinto com a arma em punho e o que viu o estarreceu, as paredes brancas estava pintadas de forma irregular com uma coloração vermelha, todos os móveis estavam no mesmo lugar, não havia vestígio de luta, pode então constatar a origem do rio de sangue.

No canto oposto à porta, viu o corpo inerte de Ester, chamou-a sem obter qualquer reação da mesma, aproximou-se dela e pode ver o pequeno furo no seu tórax, pelo qual escorria um pequeno fio de sangue, que dava origem a tudo aquilo, sua face sem vida demonstrava uma expressão de horror. Levou as mãos à cabeça e deixou soar sua voz de trovão. “Deus, por quê?” Olhou em volta e não viu vestígio de Fabrício, checou a respiração da moça, seu pulso e seu batimento cardíaco enquanto era acompanhado pelos olhares dos soldados “Está morta!” Exclamou para os dois homens, “Achem Fabrício, precisamos de explicações, vamos mexam-se.” Ordenou.

Os soldados desceram as escadas, e transmitiram a ordem aos demais homens que já haviam vasculhado todos os cômodos do andar de baixo “Não encontramos ninguém na casa, não achamos qualquer vestígio de invasão.” Felisberto estava com os olhos marejados e as mãos trêmulas, caminhou com dificuldade até a extremidade oposta onde avistou um pequeno objeto metálico negro abandonado ao chão. Era o revólver que usaram para cometer o assassínio, ao lado deste estava um pequeno bilhete escrito com uma caligrafia difícil de ser interpretada, por conta das letras trêmulas, no qual se achava a seguinte inscrição:

“Matei o pássaro que tentava me atacar todas as noites, aproximara-se de mim como um demônio sedento por sangue, seus olhos vermelhos queriam minha carne, enquanto tentava dilacerar meu corpo com seu bico cortante! Aqueles olhos são os olhos da morte, seu canto é o eflúvio infernal, matei-o por temor e ele levou meu amor.”

Sem compreender o delegado percorreu o quarto com os olhos a procura de algo que denotasse sentido àquelas palavras e nada encontrou além do corpo da pobre mulher que dormia complacente no outro lado e o sangue que estava espalhado por todo o lugar. Sentiu-se invadir pela confusão e pelo medo, ouviu gritos na parte inferior da casa e abandonou o quarto para poder averiguar o ocorrido. Chegando ao andar de baixo viu os soldados sobressaltados tentando conter o povo que queria entrar, “Saiam, não podem passar!” gritava um, “Mais um passo e eu abro fogo!” prometia outro, então controlou o sentimento de horror que o consumia e gritou para a população alvoroçada “Aqui nesta casa, houve um crime horrendo, Ester foi brutalmente assassinada e Fabrício está desaparecido, voltem para suas casas e a qualquer vestígio dele me comuniquem, até onde sabemos Fabrício pode ser perigoso, é melhor terem cautela.” Ao ouvir o estampido da voz de Felisberto, toda a população se calou, até mesmo o enorme pássaro negro findou sua ária infernal. “Vou encontrar Fabrício e obter esclarecimentos sobre esse crime, prometo a vocês, nem que seja a última coisa que eu faça.” A população pouco a pouco começava a se mexer, dando espaço para o delegado, que avançava pelo jardim acompanhado pelos vermelhos olhos do enorme pássaro negro em cima da casa.

Poucos minutos depois enquanto se encontrava no interior da delegacia Felisberto ouviu novo alvoroço no lado de fora, se dirigiu até a entrada e observou o que estava acontecendo, foi quando viu os cinco soldados cercando o maltrapilho no meio da praça. “O que está havendo, da onde este homem saiu?” perguntou ele aos gritos, com a arma na mão correu em direção ao grupo. Fabrício estava num estado deplorável, olhos arregalados e respiração ofegante, gritava para tudo e todos “SAIAM DE PERTO DE MIM, CORVOS DO INFERNO, DEIXE-ME EM PAZ, VOU MATÁ-LOS TODOS!” E os homens tentavam fazê-lo reconhecer a todos, “Acalme-se Fabrício, somos nós seus amigos.” E este continuava a berrar em meio à praça, “VOU MATÁ-LOS DEMÔNIOS, SAIAM!” E socava o ar enquanto gritava “ELE PAROU A BALA, ELE MEQUER VIVO, VOU MATR TODOS VOCÊS!” Nesse momento, Felisberto se aproximou por trás do homem e se jogou em cima dele, Fabrício mal conseguia respirar com aquele homem que pesava feito um cavalo em cima de seu corpo, “SOLTE-ME AVE DOS INFERNOS, ME SOLTE NÃO QUERO IR COM VOCÊ!” Os outros homens ajudaram Felisberto a conter Fabrício se jogando em cima dele.

Levaram-no para o interior da delegacia com as mãos atadas e um olhar que refletia loucura. “Vamos Fabrício diga logo o motivo do crime!” Gritava o delegado, com uma expressão que em nada lembrava aquela expressão cândida d’outrora. “Ele parou a bala, ele me quer vivo!” Era a única coisa que Fabrício respondia “Ele quem?” Perguntava Felisberto sem paciência, mas a resposta que obtinha era a mesma da anterior e ressoava as palavras trêmulas que o louco pronunciava em tom baixo, era como um eco sem sentido. “Ele parou a bala.” Voltava a repetir, “Matei-o, mas não era ele!” Neste momento o punho pesado do delegado lançou-se contra sua boca. “Você matou Ester, seu facínora, matou a mulher que jurou amar e proteger” Fabrício se punha a chorar.

Na noite anterior, tudo corria bem tudo estava em paz como sempre fora, Fabrício esperava no quarto por sua mulher, quando foi tomado por uma estranha sensação, era uma linda noite de maio, a lua brilhava impávida no céu, cobrindo tudo na cidadezinha com um manto de luz prateada. Enquanto esperava ele arrumava o quarto para se deitarem, ouviu então uma voz muito baixa que chamava de forma ininterrupta seu nome, olhou em volta e não viu ninguém, abriu a janela que dava para o jardim e nada viu além das belas flores farfalhado ao vento suave, fechou-a e voltou a fazer o que fazia, ouviu o chamado novamente e subitamente viu um vulto passar frente à janela, pegou o velho revolver carregou as cavidades que faltavam com duas balas, pois já tinham quatro no tambor e se dirigiu em sentido a mesma. Quando de repente ouviu a porta atrás de si ser aberta, apavorado apontou a arma em sua direção e viu a enorme ave de penas negras, que tanto o perseguia em sonhos, seus olhos eram de um vermelho muito vívido e seu canto era aterrador.

Petrificado pelo medo Fabrício gritava. “Afaste-se de mim, afaste-se!” E a ave respondia para abaixar a arma, em um canto ensurdecedor. “Sou eu meu amor, pare de apontar isso para mim.” Mas louco pelo medo e pelo brilho intenso dos grandes olhos vermelhos, Fabrício não ouvia seu pedido, foi quando viu o enorme animal se aproximando e disparou bem no centro de seu tórax, a ave caiu pesadamente ao chão com o bico entreaberto. Fabrício se deixou cair na outra extremidade, petrificado pelo horror, quando se permitiu abrir novamente os olhos avistou sua esposa caída esvaindo-se em sangue no mesmo lugar que jazia sua mãe anos antes. Atingida por um tiro da carabina de seu pai, pensou em tudo que tinha vivido até ali e percebeu que divisava a mesma cena terrível de sua infância, ficou com os olhos embebidos de lágrimas e delírio. Pegou a arma pôs contra sua glabela e puxou o gatilho, a arma cuspiu um clarão acompanhado por uma língua de fogo, mas segundos depois viu que estava intacto, não se lembrava de que dias antes teria carregado a arma com munição de festim e depois do disparo se deixou abraçar pela loucura, escreveu um bilhete e saiu da casa. Permaneceu no porão até à tarde do dia seguinte quando guiado pelo canto de vários pássaros e pela luz do sol no exterior da sua casa se pôs a sair. Ao chegar à praça foi cercado pelos policias que vasculharam a casa a sua procura.

Felisberto constatou que aquele homem fora tragado pela loucura e permitiu levarem-no para a casa da misericórdia que ficava na cidade vizinha e cuidava de pessoas que se esvaem pelos braços rijos da insanidade. Foi então que percebeu que até mesmo a felicidade era ameaçada pelas garras negras dos impropérios da vida e mesmo o mais amável dos homens poderia se transformar em um monstro, mesmo a felicidade que é um estado supremo, pode ser destruída pela linha tênue da loucura.

terça-feira, 27 de março de 2012

A aranha


Imagem: A aranha, autor desconhecido.


Entre o silêncio da noite de voz abafada,
Surge ao pensamento o enlace da mortalha,
Nada é singelo tudo se faz agudo
Pérfido sentido se faz mais que obtuso.

Do cenário estático povoado por lembranças
Tudo se faz tácito como o fim da esperança
Sua companhia devota-me um aracnídeo,
Pequeno e frágil, bem como o hominídeo.

Encara-me oito olhos todos eles de uma vez
Todos muitos sóbrios, transbordando sensatez.
Fita este ser que se prende a tua parede,
Vedes como o é sequioso por dizer-te.

Sabes quem sou eu, a tecer teia penosa?
Um pedaço seu, conferindo a estas cordas
Imagens que hoje não te resta a visão,
Sou eu parte de ti e me chamo solidão

Diz-me então de súbito, do alto de sua teia,
Não tens dá vida o júbilo, trazes dor em tua veia.
Voltando a tecer suas fibras ilusórias,
Onde rendilha as máculas da memória.




sexta-feira, 23 de março de 2012

Insânia


Imagem; Parte de Alegoria do Triunfo de Vênus, de Agnolo Bronzino. 


Beba em sua própria loucura,
A gota amarga deste vinho
No coração em desalinho
Já reinou tanta agrura...

Fita a insanidade destas retinas,
Quais se mostram num reflexo,
Onde o frendor em desconexo,
Da loucura te sublima.

Tu lograste da vida o encanto,
Da força de teus versos
E das questões do universo
Feste teu infindo recanto.

Onde só lá podes ser vivo
Ou até bramir um grito,
Qual ruirá todo tormento,
Porém é só mais um momento.

Na fealdade de tua mente,
És ser, não és serpente,
A silvar por esta terra
És o limite do real
Ante a força das quimeras.








 Rio de Janeiro, 16 de março de 2012.

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Corolas Secas

(Imagem; Flor morta, autor desconhecido) 



É angústia a sombra derradeira,
Do agudo píncaro d’outeiro
Nutre a voz de dorido pranteio
Semeia ao solo pérfida roseira.

Neste vergel de corolas secas
Findam-se as cores da primavera,
Nascem assombrosas Quimeras
Destroçando a delicada seda.

Vai-se então por flume corrente
A alva pérola de saudoso júbilo
Qual vistosa fulgia fremente,

Brio fastuoso de colorido rúbio.
Estertora em fleuma silente
A acrimônia de seu mundo fusco.








Rio de Janeiro, 13 de julho de 2011.


sexta-feira, 8 de julho de 2011

A dança das letras


(Imagem; A Leitora de Jean-Honoré Fragonard)



Eu quero a leveza das letras
Quais livres de leis se põem a bailar.
Por vezes se unem faceiras
Suscitam palavras de lerna e de mar.

Almejo a beleza dum verso
Que o ledo ardor me faça sentir,
O beijo sereno da brisa
Trazendo o sabor da musa a dormir.

Espero que desses dedos
Nasça o poema que irá descrever
O adejar dum pássaro negro
Qual cala sua ária sob alvorecer.

Não quero somente o belo,
As flores flamantes sob o sol,
Pois reina sorrateiro o flagelo
Na ambigüidade do arrebol.

Abraço as letras que fremem,
As lívidas cores do inverno
E vivas retumbam perene
Lancinante agrura de meu inferno.






                                                                                                                                                                            Rio de Janeiro, 29 de junho de 2011.


  
Caminhava eu por ruas
A ouvir o som da gaita,
E o gorjear das aves
Atassalhando o negro véu.

Questionando se algum dia
O picadeiro dos horrores,
Findará os dissabores
De minha quase-vida?



Duque de Caxias, 8 de julho de 2011.

domingo, 19 de junho de 2011

O despertar de Alice - Uma crônica

O despertar de Alice


Dizem que a cada despertar de uma alvorada, somos contemplados com uma nova possibilidade de reescrevermos o livro de nossas vidas. Para Alice, essa afirmativa era quase que crença irrefutável, um dogma divino a qual não se cabe questionamento ou ponderações vulgares, à nossa parca concepção racional.  Alice, como em todas as alvoradas recolhia do chão as sobras de seu ser, os cacos que desprenderam-se durante a fria e solitária madrugada, qual flagelou seu pensar.

Algo naquela branca manhã de outono não se comportava de forma apropriada, seria a luz, a se entrelaçar às copas das árvores num bailar faceiro entre as preguiçosas horas do solstício? Seria a brisa que acariciava com dedos gélidos sua carne pura e macia? Seriam as lembranças das desventuras passadas quais impregnavam sua mente com imagens ferrenhas e sentimentos ferinos? Ou ainda o calar repentino do saudoso canto das aves? Tais especulações pareciam resistir à luz de sua razão.

A jovem mulher não conseguia distinguir com precisão a realidade que a cerca, das insólitas figuras quais irrompiam às barreiras quase que membranosas das fantasias geradas por sua mente. Ao lado de seu leito, bem ali ao pé da cama repousava um objeto imóvel, o qual não se assemelha com nenhum outro que antes ali estava depositado. Sua janela entreaberta convidava o vento frio e ruidoso a entrar vagarosamente obrigando as cortinas a participarem de uma dança irregular e silenciosa, espalhava em seu reduto feminino o olor das perfumarias quais já faziam pareciam emanar de seu belo corpo juvenil. Lá fora um alvorecer tristonho se dobrava sobre o jardim de begônias e orquídeas secas, árvores despidas do verde, um jardim que renunciava lentamente à vida.

Alice não sabia o que deveria fazer levantar? Tentar volver ao sono e recuperar a consciência empós? Encontrava-se atônita ante a estranha figura que repousava pacificamente estendida sobre o chão de seus aposentos. Perplexa a menina tenta levantar vagarosamente, para que num cuidadoso e súbito movimento pudesse se esvair dali a procura de alguma razão. Irrompera cuidadosamente em um salto de sua cama em direção da porta e a abriu, essa não se opôs de nenhuma forma ao comando da jovem, porém obedeceu rangendo um lamento vagaroso, por trás do solícito corpo de madeira, encontrava-se nada mais que uma densa e maciça parede -- O que significaria isso? – Interrogou o vazio assustada, não poderia de nenhuma forma ser real. Movida pelo assombro, rumou em direção a janela atrás das cortinas bailarinas, a abriu depressa enquanto fechava os olhos e como um gato lançou seu corpo para o exterior.

Sentiu um pesado impacto sobre seu dorso, qual a fez concluir que chegara ao solo, permaneceu ali por algum tempo com os olhos fechados, sua mente agora já se encontrava totalmente desperta e essa estranha manhã já lhe trazia emergida em medo. Decidiu abrir os olhos lentamente, deixando a luz amena invadir suas retinas, aos poucos foi reconhecendo as formas que a cercara, com os olhos totalmente abertos e cheios de alarme, sentiu-se tomada por estranhas sensações ao perceber que estava estirada sobre o frio chão de seu quarto.  Envolta pelo obscuro manto da confusão, tentou lançar-se novamente à janela, uma, duas, três vezes... Sempre obtendo o mesmo resultado.

Assustada proferiu algumas palavras, a fim de emitir seu horror àquela situação incomum. Voltou sua atenção para as coisas a seu redor, talvez a procura de algo que pudesse explicar tamanho desvario, tudo estava como deviria, exceto a inanimada figura alocada ao lado de sua cama. Chorou e gritou esperando alguém vir a seu socorro, nada adiantou, até parecia que ela, o quarto e a pintura viva de uma janela eram as únicas coisas existentes, lá fora nenhum sinal de vida a manhã se fazia mais cinza, a brisa mais fria e as flores mais mortas, um imenso campo no tom marrom se estendia até tocar o céu na distante interseção do horizonte.  

Lembrou-se do telefone e rapidamente se dirigiu a ele, em seu lugar apenas o vazio, -- Seria possível? Um sonho talvez? – Sem nenhuma alternativa, reparando que o objeto ainda se encontrava ali imóvel, avançou sobre o mesmo, percebeu o pequeno rio rubro que brotava daquele corpo inerte, com cautela se pôs a examinar a figura, reconhecendo-a, era um cadáver, uma pessoa, mas quem seria? Os longos cabelos castanhos dificultavam a visualização de seu perfil, porém a bela silueta lhe era extremamente familiar, aproximando-se horrorizada do ensanguentado pedaço de carne, se pôs ao reconhecimento da mulher que dormia pacificamente, sem emitir nenhuma sonoridade, Alice dominou o temor e decidiu mudar o decúbito em que a mulher descansava, ao se deparar com sua face entregou-se ao desespero, ali naquele chão estava Alice inerte abraçada ao derradeiro e eterno sono.

Gritos jorravam com esforço de sua garganta, enquanto banhava-se com seu próprio sangue, em meio aos seus bramidos ouviu o cantar da porta qual abria lamentosa atrás de si, ao voltar os olhos em sua direção se deparou com a enfermeira que lhe trazia sua medicação diária adentrando em seu quarto de paredes mortas em tom de cinza, a mulher lança um olhar de desapontamento sobre Alice, fazendo-a tomar seus remédios, a menina olha em volta relutante contemplando o vazio de um quarto de hospício em que não se achava nada além dela, uma enfermeira, sua cama e o feraz desvario de uma jovem consumida pela insanidade, soluçante se pôs a dormir.




Rio de Janeiro, 12 de junho de 2011.