Imagem: Egon Schiele
No fim
daquela noite restavam apenas os olhos embebidos em lágrimas e afogados em
delírio, em volta os cercava um cenário de sombras e rubras pinturas abstratas
gravadas nas paredes carcomidas pelo tempo. As sombras dançavam frementes se
intercalando aos feixes de luz, à medida que o vento abraçava com ruidosa
parcimônia todo o exterior da casa. No quarto escuro, jazia o gigante silêncio,
que era quebrado apenas por leves incursões respiratórias e os gemidos das lamentações.
Numa das quatro extremidades do recinto habitava o corpo
branco e inerte duma jovem, envolta na altura do tórax por uma espessa malha
sanguífera de alguma forma a placidez de seu rosto mantinha toda a exuberância
angelical presente antes do seu peito emudecer. A sua volta um rio rubro se
estendia feito um tapete qual cobria o assoalho cintilante e impecável, em
sentido diagonal na outra extremidade estavam os olhos que a encaravam do alto
de sua insanidade, e buscavam sem nenhum sucesso o entendimento de tudo que se
precedera àquele momento. Intercalava a direção do olhar, ora para o corpo
inerte banhado pelas sombras, ora para as mãos cobertas por um líquido vermelho
com olor ferroso, que quente já não era, começando a unir-se à superfície daquelas
mãos calejadas e varonis.
“O que eu fiz?” era o que pensavam aqueles olhos marejados de
lágrimas e horror, “Por que não levanta?” gritava a boca tentando extirpar do
peito o dolente espinho, mas nada fazia com que a moça se altivasse de seu
leito sem vida. Foi quando avistou a arma inerte a sua frente, e tentou fazer
parar de uma vez por todas aquela dor, caminhou lentamente até perto do metal
reluzente e silencioso que repousava com a complacência de uma criança tomada
pela força do sono pueril. Abaixou-se bem devagar, e tocou o frio metal com a
mão direita, qual já apresentava uma coloração vermelho-amarronzada. Levantou o
objeto de metal negro e reluzente, pôs encostado à sua glabela e enquanto o sua
pele perdia calor para o metal frio, sentiu uma lágrima descer pelo seu rosto
sem expressão. Puxou o gatilho.
Em frente à silenciosa casa, pássaros iniciaram voo,
espantados pelo oco e inesperado estampido. No horizonte o sol despontava em
seus primeiros raios de luz, a noite morria depois de encobrir a tragédia sem
precedentes. Aos poucos a vida na pequena cidade foi tomando forma a lojinha de
doces que as crianças a caminho da pequena escola, ao lado do suntuoso templo
do padre Pedro Andrade frequentavam religiosamente, não apenas pelas centenas
de guloseimas, mas também para receber de bom grado o primeiro afago do dia de
sua proprietária, começa a abrir lentamente suas janelinhas de ápice
arredondado e madeira com tinta azul, que contrastava com as paredes dum branco
mui vívido.
A padaria já emanava pelo ar o cheiro dos pães frescos que ia
de casa em casa convidando seus habitantes ao desjejum. Os primeiros rostos já
começavam a se expor à luz tênue do sol de maio, buscando o frescor da brisa
que cantava de forma harmoniosa e melancólica a canção dum novo dia. Os
telhados de telhas vermelhas começavam a se iluminar e se destacar sobre a
colina verde, tudo acontecia sob um clima pacífico quebrado apenas pelo canto
dos pássaros e pelos primeiros arrulhos infantes dos meninos que se punham a
correr de suas mães na tentativa de escapar do banho matinal, alguns se
escondiam no interior de suas casas, outros, no entanto subiam em árvores com a
certeza de assim estarem seguros do eminente risco de serem capturados.
Abandonavam sua fortaleza logo que a fome apertava, sendo submetidos então à
tortura aquífera que lhes aguardava prontamente.
O dia como sempre se iniciava de forma pacífica, aos pouco se
via as crianças tomando as ruas em direção à escola, os pais saindo para seus
afazeres, se cumprimentando a cada dois passos, às vezes se abraçando e
compartilhando da pacata vida em comum, nenhum acontecimento escandalizava a
pequenina cidade envolta por bosques verdes cheios de flores alegres, nenhuma
contenda era registrada pela polícia local, a qual seu chefe era visto como
psicólogo dos mais necessitados de atenção e juiz nos pequenos desentendimentos
rotineiros do povoado que na maioria das vezes acabavam numa rodada de cerveja no
botequim do Senhor Antônio entre a fumaça alegre de cigarros e frituras. Não era
de se estranhar que aquele isolado logradouro fora batizado de Felicidade,
tamanhas eram a paz e harmonia.
O que poucos esperavam, porém era o fato de que a rotina
luminosa daquela pequena e isolada cidade seria quebrada repentinamente por um
fato inimaginável, tudo parecia estar sob a mais perfeita ordem. Até que alguém
percebeu sob o escaldante sol do meio dia que a pequena costuraria de Ester não
abrira até aquele momento, iniciaram então burburinhos, “Não vi nem Ester, nem
Fabrício, no dia de hoje!” dizia uma senhora de vestido lilás de cambraia, em
meio a um grupo de mulheres, “Será que está enferma?” Questionava outra com um
vestido de cetim róseo, foi quando repararam que a loja de ferragens de frente
a pequena praça também se encontravam com as portas fechadas. “Olhem Fabrício
também não abriu sua loja!”, observava uma terceira senhora entre as mulheres
corpulentas que palestravam sobre a sombra das mangueiras na pracinha da
cidade.
Aquele fato denotava uma desconfiança incomum já que os dois
estabelecimentos eram os primeiros a abrir suas portas. Alarmado o grupo de
senhoras se encaminhou até defronte a casa do casal, que permanecia com as
pesadas portas de carvalho fechadas, “Vejam, que estranho nenhum sinal dos
dois, as portam estão caladas e as janelas fechadas, será que devemos ir até
lá?” perguntou a mais nova dentre as mulheres, as demais apenas assentiram com
um movimento de cabeça, enquanto entreolhavam-se com desconfiança.
Bateram a primeira vez e o interior continuava calado,
aparentando ausência de vida, bateram a segunda e não obtiveram resposta
alguma, bateram com mais força a terceira vez, e nada aconteceu, sobressaltadas
decidiram procurar ajuda e se dirigiram até a pequena delegacia no outro lado
da praça, o delegado Felisberto, lia as notícias na gazeta, enquanto ouvia suas
músicas preferidas no antigo rádio de pilhas herdado de seu pai, era um negro
alto e muito forte, com dentição perfeita e de brancura reluzente, tinha mãos
firmes e olhar tranquilo, sempre sorria mesmo quando tomado por suas angústias
internas. Enquanto era tomado de ímpeto pela doce fúria das notas da 38°
sinfonia de Mozart, sentia seu espírito elevar-se, quando de repente sua
atenção é voltada para a porta ao seu lado esquerdo.
Virou assustado, adentrar em sua sala um grupo de mulheres
que falavam todas de uma só vez e solicitavam uma atitude de sua parte, sobre
algo que ele não conseguia compreender, as mulheres rumavam em sua direção
gritando feito gralhas no fervor do acasalamento, ele não pode conter o espanto,
mas logo recuperou a postura e repôs a ordem com sua voz grave e sonora.
“Acalmem-se senhoras, aqui é uma delegacia não uma casa de loucos, acalmem-se
ou mando detê-las.” Elas sabiam que não seriam detidas por nem ele, nem por
ninguém, mesmo porque o delegado nunca prendia um ladrão de galinhas sequer,
procurando sempre resolver os problemas da cidade com palestras ao invés de
prisões.
Após serem alcançadas pela estrondosa e bela voz de Felisberto
as mulheres silenciaram e se puseram a encará-lo, o delegado voltou a mostrar
seu sorriso branco feito a neve e recuperou todo o seu espírito pacífico.
“Muito bem, o que está havendo? Qual é o motivo do rebuliço?”.
-- Desculpe-nos Felisberto, é
que a pouco percebemos... E todas recomeçaram a falar ao mesmo tempo. Era uma
baderna infernal, o delegado então se encaminhou para a mesa onde estava o
pequeno rádio e o desligou calmamente, abriu a gaveta da esquerda enquanto as
vozes se misturavam e se confundiam e retirou de seu interior, um pequeno
martelo madeira maciça semelhante aos usados nas cortes jurídicas, e com toda a
força que lhe valia bateu na superfície da mesa, produzindo uma sessão de
pancadas muito altas. “Calem-se, por favor, as senhoras estão acabando com
minha razão” gritava o negro gigantesco detrás de sua mesa. Nesse momento todas
as vozes deram lugar a um profundo silêncio, “desculpem senhoras, mas é
impossível manter a calma ante a esses uivos de animais enfurecidos, queiram
por gentileza, explicar-me o motivo do alarde de forma civilizada”. Foi quando
a que tinha iniciado a frase voltou a falar.
-- Como ia dizendo, a pouco
percebemos que Ester e Fabrício, não abriram seus estabelecimentos, como já
passa do meio dia e eles são sempre os primeiros a começarem as atividades,
decidimos averiguar, indo até sua casa, mas quando lá chegamos não parecia haver
ninguém no recinto. Disse a mulher com vestido lilás.
-- Não pense que somos
mexeriqueiras, apenas estamos preocupadas com o bem-estar de ambos. Completou a
mulher com vestido de cetim.
-- Senhoras, meus homens não
relataram nenhum acontecimento fora do normal, os dois devem ter dormido até
tarde, mas iremos averiguar o fato. Disse Felisberto com seu sorriso amigável e
sua serenidade paternal.
Após a palestra com as mulheres o delegado incumbiu dois
soldados à acompanhá-lo até a casa do casal que ficava a poucos metros da
delegacia, caminharam em meio aos transeuntes com muita calma, até chegar em
frente ao portão de madeiras brancas, que guardava um jardim cultivado com
esmero, violetas, rosas de todas as cores, girassóis, bromélias e
amores-perfeitos disputavam o espaço daquele pequeno paraíso, a casa se
levantava aos fundos imponente como uma fortaleza, foi construída pelas mãos do
próprio pai de Fabrício, que morrera muitos anos antes ali mesmo naquele
jardim. Nenhum dos três homens reparou no imenso pássaro negro que sobrevoava a
velha casa, e entoava um canto lamurioso. Enquanto se aproximavam da porta.
Bateram uma vez, nas enormes portas de carvalho e obtiveram o
mesmo silêncio que as mulheres, bateram a segunda vez e a mesma resposta foi
dada. O delegado então emitiu sua potente voz em um urro gutural. “Fabrício, é
a polícia, abra a porta, por favor,” nenhum som recebia como resposta, “Ester
se estiver aí abra, ou entraremos por outros meios”, e mais uma vez a única
coisa que ouviam era a voz do silêncio. Voltou-se para seus homens e ordenou
que arrombassem as portas, os dois soldados entreolharam-se e empós obedeceram
sem pestanejar. Os homens surravam as portas com suas pernas, forçando-a a
gritar em resposta, chutavam e se lançavam em sua direção, até que uma delas
cedeu e formou uma pequena fresta que permitia divisar o interior, “Esperem um
momento” disse o delegado olhando para o imenso pássaro negro que agora estava
pousado na parte mais alta do telhado e gritava seu canto enlouquecedor.
Os homens obedeceram e pararam de espancar as portas, “O que
foi Felisberto, não quer mais entrar na casa?” questionava o mais novo dos
soldados, “Nada, achei ter ouvido algo, mas parece que não foi nada” respondeu
olhando o mesmo espaço vazio que antes contemplava. Aproximou-se da fenda entre
as duas portas, e observou o interior da casa, nada se mexia, nenhum som se
ouvia, entre os gritos do enorme pássaro invisível. “Derrubem-na, ordenou os
dois” e voltaram a surrar o velho carvalho convertido em portas, após poucos
segundos uma delas foi ao chão produzindo um enorme estrondo e os soldados
puseram suas pistolas a punho, como que esperando o ataque de um inimigo vindo
do interior da casa. Da mesma forma que antes, nada se mexia, nem produzia o
menor ruído que fosse, parecia que a casa estava vazia há anos.
“Vamos entrar” gritou enquanto liderava a incursão ao
interior do cômodo, os dois soldados o seguiam com extremo cuidado, sempre com
as armas em punho e olhando tudo a sua volta, o delegado andava com cuidado, colocando
categoricamente um pé a frente do outro, se detendo e averiguando o lugar à
medida que ia avançando, ao chegar à sala principal onde a raiz da escada que
levava aos cômodos do segundo andar e ao quarto do casal, Felisberto observou
que tudo parecia em ordem, até parar em frente aos antigos degraus da escada,
“Santo Deus, o que é isso?” Gritou, com seus grandes olhos arregalados, foi
quando os dois soldados dirigiram seus olhares e armas para o mesmo sentido que
o de Felisberto divisava e perceberam sobre a escada a torrente de sangue que
jorrava se detendo no limite do primeiro degrau. “O que houve aqui, Deus?
CHAMEM REFORÇOS ANDEM!” e um deles foi até a porta caída no chão. Saindo ao exterior
da casa, gritando aos outros soldados que estavam em frente à delegacia.
“Venham, venham rápido tragam suas armas”.
A pacata população que andava solene pelas ruas se amontoou
em frente à casa, assombrada com os gritos do saldado e sua feição de horror,
sem entender nada se acotovelavam para poder ver o que estava acontecendo. Ante
ao fervor da multidão o enorme pássaro negro gritava cada vez mais alto, mas
ninguém parecia ouvi-lo, os soldados correram imediatamente em direção ao
casarão e abriram com esforço, caminho entre a multidão estarrecida e confusa. “Saiam,
andem deem passagem”, no interior da casa, o delegado estava paralisado frente
ao rio vermelho que descia pela escada, quando os homens entraram com as armas
em punho e gritando feito feras, quando chegaram próximo à escada viram o rio
vermelho que escorria pela escada, vindo dos aposentos superiores. “Deus do
céu, que diabos é isso?” espantava-se um deles, “O senhor está bem delegado?”
perguntava outro, “Andem vasculhem a casa” ordenava outro e Felisberto
mantinha-se imóvel, ante ao rio vermelho.
Foi tirado da abstração pela voz de seus soldados e decidiu
subir. “Vamos, quero dois comigo, a qualquer indício de perigo não hesitem em
abrir fogo, o resto fique e vasculhe a casa”, falava com sua voz agora abatida
pelo horror, suas mãos suavam, sua garganta estava seca e seu peito quase
arrebentando. Foi o primeiro a pisar no rio vermelho, subiu com rapidez a
escada, quase veio abaixo e derrubou os dois homens que o seguiam, ao
escorregar no sangue corrente, mas conseguiu reestabelecer o equilíbrio e
voltou a avançar, nem se lembrava a última vez que empunhara a pistola, mas
tinha certeza que não queria voltar a empunhá-la nunca mais, chegou com cautela
ao fim da escada, olhou em volta e não viu sinal de vida, a não ser no exterior
da casa, onde se ouvia o rufar das vozes e o grito ensurdecedor do pássaro
invisível.
Caminhou com extremo cuidado pelo corredor ladeado por quatro
portas fechadas, pôs-se em frente a primeira e sinalizou para que os outros
dois homens a abrissem, apontou a arma para a porta enquanto estes a
escancaravam bem devagar, quando terminaram, não viu vestígio de nada além da
mobilha coberta por uma fina camada de poeira, adentrou o recinto e constatou
que realmente estava vazio. “Não há nada aqui, vamos para a próxima.” Assim
fizeram com outras duas portas, obtendo o mesmo resultado que a primeira.
Restava apenas uma, a que dava acesso ao quarto do casal. E somente depois
perceberam que, da mesma forma que a escada o corredor estava banhado por
sangue, reparou então que a nascente do rio vermelho provinha debaixo dessa.
Sinalizou novamente para que abrissem a porta e assim o fizeram assumindo a
mesma posição das anteriores adentrou no recinto com a arma em punho e o que
viu o estarreceu, as paredes brancas estava pintadas de forma irregular com uma
coloração vermelha, todos os móveis estavam no mesmo lugar, não havia vestígio
de luta, pode então constatar a origem do rio de sangue.
No canto oposto à porta, viu o corpo inerte de Ester,
chamou-a sem obter qualquer reação da mesma, aproximou-se dela e pode ver o
pequeno furo no seu tórax, pelo qual escorria um pequeno fio de sangue, que
dava origem a tudo aquilo, sua face sem vida demonstrava uma expressão de
horror. Levou as mãos à cabeça e deixou soar sua voz de trovão. “Deus, por quê?”
Olhou em volta e não viu vestígio de Fabrício, checou a respiração da moça, seu
pulso e seu batimento cardíaco enquanto era acompanhado pelos olhares dos
soldados “Está morta!” Exclamou para os dois homens, “Achem Fabrício,
precisamos de explicações, vamos mexam-se.” Ordenou.
Os soldados desceram as escadas, e transmitiram a ordem aos
demais homens que já haviam vasculhado todos os cômodos do andar de baixo “Não
encontramos ninguém na casa, não achamos qualquer vestígio de invasão.”
Felisberto estava com os olhos marejados e as mãos trêmulas, caminhou com
dificuldade até a extremidade oposta onde avistou um pequeno objeto metálico
negro abandonado ao chão. Era o revólver que usaram para cometer o assassínio,
ao lado deste estava um pequeno bilhete escrito com uma caligrafia difícil de
ser interpretada, por conta das letras trêmulas, no qual se achava a seguinte
inscrição:
“Matei
o pássaro que tentava me atacar todas as noites, aproximara-se de mim como um
demônio sedento por sangue, seus olhos vermelhos queriam minha carne, enquanto
tentava dilacerar meu corpo com seu bico cortante! Aqueles olhos são os olhos
da morte, seu canto é o eflúvio infernal, matei-o por temor e ele levou meu
amor.”
Sem compreender o delegado percorreu o quarto com os olhos a
procura de algo que denotasse sentido àquelas palavras e nada encontrou além do
corpo da pobre mulher que dormia complacente no outro lado e o sangue que
estava espalhado por todo o lugar. Sentiu-se invadir pela confusão e pelo medo,
ouviu gritos na parte inferior da casa e abandonou o quarto para poder
averiguar o ocorrido. Chegando ao andar de baixo viu os soldados sobressaltados
tentando conter o povo que queria entrar, “Saiam, não podem passar!” gritava
um, “Mais um passo e eu abro fogo!” prometia outro, então controlou o
sentimento de horror que o consumia e gritou para a população alvoroçada “Aqui
nesta casa, houve um crime horrendo, Ester foi brutalmente assassinada e
Fabrício está desaparecido, voltem para suas casas e a qualquer vestígio dele
me comuniquem, até onde sabemos Fabrício pode ser perigoso, é melhor terem
cautela.” Ao ouvir o estampido da voz de Felisberto, toda a população se calou,
até mesmo o enorme pássaro negro findou sua ária infernal. “Vou encontrar
Fabrício e obter esclarecimentos sobre esse crime, prometo a vocês, nem que seja
a última coisa que eu faça.” A população pouco a pouco começava a se mexer, dando
espaço para o delegado, que avançava pelo jardim acompanhado pelos vermelhos
olhos do enorme pássaro negro em cima da casa.
Poucos minutos depois enquanto se encontrava no interior da
delegacia Felisberto ouviu novo alvoroço no lado de fora, se dirigiu até a
entrada e observou o que estava acontecendo, foi quando viu os cinco soldados
cercando o maltrapilho no meio da praça. “O que está havendo, da onde este
homem saiu?” perguntou ele aos gritos, com a arma na mão correu em direção ao
grupo. Fabrício estava num estado deplorável, olhos arregalados e respiração
ofegante, gritava para tudo e todos “SAIAM DE PERTO DE MIM, CORVOS DO INFERNO,
DEIXE-ME EM PAZ, VOU MATÁ-LOS TODOS!” E os homens tentavam fazê-lo reconhecer a
todos, “Acalme-se Fabrício, somos nós seus amigos.” E este continuava a berrar
em meio à praça, “VOU MATÁ-LOS DEMÔNIOS, SAIAM!” E socava o ar enquanto gritava
“ELE PAROU A BALA, ELE MEQUER VIVO, VOU MATR TODOS VOCÊS!” Nesse momento, Felisberto
se aproximou por trás do homem e se jogou em cima dele, Fabrício mal conseguia
respirar com aquele homem que pesava feito um cavalo em cima de seu corpo, “SOLTE-ME
AVE DOS INFERNOS, ME SOLTE NÃO QUERO IR COM VOCÊ!” Os outros homens ajudaram
Felisberto a conter Fabrício se jogando em cima dele.
Levaram-no
para o interior da delegacia com as mãos atadas e um olhar que refletia loucura.
“Vamos Fabrício diga logo o motivo do crime!” Gritava o delegado, com uma
expressão que em nada lembrava aquela expressão cândida d’outrora. “Ele parou a
bala, ele me quer vivo!” Era a única coisa que Fabrício respondia “Ele quem?” Perguntava
Felisberto sem paciência, mas a resposta que obtinha era a mesma da anterior e
ressoava as palavras trêmulas que o louco pronunciava em tom baixo, era como um
eco sem sentido. “Ele parou a bala.” Voltava a repetir, “Matei-o, mas não era
ele!” Neste momento o punho pesado do delegado lançou-se contra sua boca. “Você
matou Ester, seu facínora, matou a mulher que jurou amar e proteger” Fabrício
se punha a chorar.
Na
noite anterior, tudo corria bem tudo estava em paz como sempre fora, Fabrício
esperava no quarto por sua mulher, quando foi tomado por uma estranha sensação,
era uma linda noite de maio, a lua brilhava impávida no céu, cobrindo tudo na
cidadezinha com um manto de luz prateada. Enquanto esperava ele arrumava o
quarto para se deitarem, ouviu então uma voz muito baixa que chamava de forma
ininterrupta seu nome, olhou em volta e não viu ninguém, abriu a janela que
dava para o jardim e nada viu além das belas flores farfalhado ao vento suave,
fechou-a e voltou a fazer o que fazia, ouviu o chamado novamente e subitamente
viu um vulto passar frente à janela, pegou o velho revolver carregou as
cavidades que faltavam com duas balas, pois já tinham quatro no tambor e se
dirigiu em sentido a mesma. Quando de repente ouviu a porta atrás de si ser
aberta, apavorado apontou a arma em sua direção e viu a enorme ave de penas
negras, que tanto o perseguia em sonhos, seus olhos eram de um vermelho muito
vívido e seu canto era aterrador.
Petrificado
pelo medo Fabrício gritava. “Afaste-se de mim, afaste-se!” E a ave respondia
para abaixar a arma, em um canto ensurdecedor. “Sou eu meu amor, pare de
apontar isso para mim.” Mas louco pelo medo e pelo brilho intenso dos grandes
olhos vermelhos, Fabrício não ouvia seu pedido, foi quando viu o enorme animal
se aproximando e disparou bem no centro de seu tórax, a ave caiu pesadamente ao
chão com o bico entreaberto. Fabrício se deixou cair na outra extremidade, petrificado
pelo horror, quando se permitiu abrir novamente os olhos avistou sua esposa
caída esvaindo-se em sangue no mesmo lugar que jazia sua mãe anos antes. Atingida
por um tiro da carabina de seu pai, pensou em tudo que tinha vivido até ali e
percebeu que divisava a mesma cena terrível de sua infância, ficou com os olhos
embebidos de lágrimas e delírio. Pegou a arma pôs contra sua glabela e puxou o
gatilho, a arma cuspiu um clarão acompanhado por uma língua de fogo, mas
segundos depois viu que estava intacto, não se lembrava de que dias antes teria
carregado a arma com munição de festim e depois do disparo se deixou abraçar pela
loucura, escreveu um bilhete e saiu da casa. Permaneceu no porão até à tarde do
dia seguinte quando guiado pelo canto de vários pássaros e pela luz do sol no
exterior da sua casa se pôs a sair. Ao chegar à praça foi cercado pelos
policias que vasculharam a casa a sua procura.
Felisberto
constatou que aquele homem fora tragado pela loucura e permitiu levarem-no para
a casa da misericórdia que ficava na cidade vizinha e cuidava de pessoas que se
esvaem pelos braços rijos da insanidade. Foi então que percebeu que até mesmo a
felicidade era ameaçada pelas garras negras dos impropérios da vida e mesmo o
mais amável dos homens poderia se transformar em um monstro, mesmo a felicidade
que é um estado supremo, pode ser destruída pela linha tênue da loucura.
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